Quando o trabalho exige que você desligue quem é
- Hélio Salomão Cordoeira
- 18 de nov.
- 6 min de leitura
Severance — A Síndrome da Desconexão Afetiva
Inspirada em Severance, esta análise revela como a produtividade sem propósito e a despersonalização emocional moldam o novo rosto do burnout corporativo.
A produtividade que continua mesmo quando o sentido se perde.
A anestesia emocional do trabalho moderno
Em Severance, o trabalho é separado da vida.O que na série é uma ficção cirúrgica — uma operação que divide o “eu pessoal” do “eu profissional” —, no mundo real é um mecanismo psicológico de sobrevivência.É a dissociação funcional: quando o corpo continua produzindo, mas a mente já se desligou.
Essa desconexão emocional é uma resposta natural a sistemas de trabalho que se tornaram emocionalmente insustentáveis.A cobrança por desempenho constante, o excesso de estímulos e a falta de sentido empurram profissionais para um estado de anestesia afetiva.Eles seguem entregando — mas deixaram de sentir pertencimento.É a produtividade que sobrevive ao custo da identidade.
A série Severance é, portanto, um espelho cruel do trabalho moderno.Um mundo onde o foco é confundido com isolamento, a eficiência com ausência, e o silêncio com estabilidade.Mas, como mostram as pesquisas recentes, esse tipo de “eficiência” é apenas a face bem polida do esgotamento.
Despersonalização: quando o trabalho exige que você se desligue de si
A pesquisadora Christina Maslach, referência mundial no estudo do burnout, define a despersonalização como um dos três pilares da síndrome — ao lado da exaustão emocional e da redução da realização profissional.É o momento em que o trabalhador, para se proteger, passa a agir de forma impessoal, fria e distante.O contato com colegas, clientes e propósito é reduzido ao mínimo necessário.É a “anestesia” que antecede o colapso.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) reconhece oficialmente o burnout como um fenômeno ocupacional, e não uma fraqueza individual.O problema, portanto, não está nas pessoas — mas nas condições que as obrigam a se desconectar.
A ISMA-BR (International Stress Management Association) confirma a gravidade:
72% dos profissionais brasileiros se sentem emocionalmente exaustos;
32% já apresentam sintomas clínicos de burnout;
e 6 em cada 10 afirmam que “precisam se desligar emocionalmente” para continuar produtivos.
O que deveria ser um sintoma virou ferramenta: desligar-se é, agora, uma estratégia de sobrevivência diante de ambientes que não toleram vulnerabilidade.Essa “despersonalização funcional” é a base da Síndrome da Desconexão Afetiva.
Presenteísmo: a ilusão da produtividade contínua
O mundo corporativo aprendeu a medir a presença, não a plenitude.Acredita que estar presente fisicamente — ou online — é o mesmo que estar produtivo.Mas a ciência mostra o contrário.
Pesquisas da MIT Sloan Management Review descrevem o presenteísmo como o fenômeno no qual o trabalhador está presente, mas opera com capacidade mental reduzida, devido ao estresse crônico ou à fadiga emocional.É a produtividade automatizada — o corpo cumpre a tarefa, mas a mente já se retirou.
A ISMA-BR estima que o presenteísmo custa mais às empresas brasileiras do que o absenteísmo, porque ele é crônico, silencioso e difícil de detectar.Enquanto o absenteísmo é mensurável (faltas e licenças), o presenteísmo se disfarça de lealdade e disciplina.Mas, na prática, representa a perda do pensamento crítico, da criatividade e da colaboração.
Segundo o relatório State of the Global Workplace 2024, da Gallup, apenas 21% dos profissionais no mundo se declaram engajados.No Brasil, os níveis de estresse diário ultrapassam 50% — um dos mais altos do planeta.O dado é simbólico: metade da força de trabalho mundial atua em modo automático, equilibrando desempenho e exaustão.A produtividade continua, mas o propósito desaparece.
A sobrecarga cognitiva e o desligamento emocional
A Harvard Business Review, em The Cognitive Overload Crisis (2024), descreve o impacto direto da hiperconectividade na saúde mental.E-mails, reuniões, notificações e plataformas competem pela atenção em ciclos contínuos, produzindo o que os neurocientistas chamam de fadiga de decisão.O cérebro, saturado de estímulos, reage desligando o componente emocional para preservar o mínimo de funcionalidade.
É o mesmo mecanismo descrito na psicologia do trauma: diante de uma sobrecarga que não pode ser enfrentada, o corpo “desliga” para continuar.No ambiente de trabalho, esse desligamento assume uma aparência sofisticada: produtividade constante, mas sem vitalidade.Trata-se da anestesia emocional corporativa — uma cultura onde o engajamento é encenado, e o silêncio é sinal de eficiência.
A MIT Sloan nomeia esse fenômeno de task saturation — saturação de tarefas repetitivas e desconectadas de propósito, que destroem a capacidade de reflexão.64% dos profissionais afirmam “trabalhar mais horas, mas com menor clareza sobre o impacto do que fazem”.Essa é a essência da desconexão afetiva: o esgotamento travestido de rotina.
Alienação e perda de sentido: o trabalhador dividido
O sociólogo Karl Marx descreveu a alienação como o estado no qual o trabalhador deixa de se reconhecer no produto do próprio trabalho.Em Severance, essa alienação ganha forma literal — os personagens vivem em um escritório onde nem sabem o que estão produzindo.Eles executam, mas não compreendem.É o retrato fiel de uma cultura empresarial onde o “como” e o “quanto” substituíram o “por quê”.
A Gallup traduz esse fenômeno em números: 77% da força de trabalho mundial está desengajada ou ativamente desengajada.Esses profissionais cumprem suas tarefas, mas emocionalmente já se foram.São os quiet quitters, os “funcionários invisíveis” que mantêm a operação rodando enquanto o sentido se dissolve.
Esse é o paradoxo moderno: nunca se trabalhou tanto, e nunca se esteve tão distante do trabalho.
O que a liderança pode (e precisa) fazer
A solução não é pedir que as pessoas “cuidem melhor da própria saúde mental”.A dissociação funcional é uma resposta sistêmica — e só pode ser revertida por mudanças sistêmicas.As pesquisas convergem em três eixos de reconexão:
1. Propósito — Job Crafting e o sentido do impacto
A professora Amy Wrzesniewski (Yale School of Management) define o job crafting como a capacidade de moldar o próprio trabalho.Funcionários engajados alteram tarefas, relacionamentos e percepções para encontrar significado no que fazem.O papel da liderança é facilitar esse processo, conectando tarefas diárias ao impacto real.Na prática: substituir o “faça isso” pelo “isso faz diferença porque...”.A reconexão começa quando o trabalho volta a ter história.
2. Segurança — Vulnerabilidade e cultura emocional
O Projeto Aristóteles (Google) e os estudos da professora Amy Edmondson (Harvard) mostram que o maior preditor de performance é a segurança psicológica — a crença de que se pode falar, errar e sentir sem punição.A liderança precisa validar emoções como dados, não como fraquezas.A frase “Percebi que a energia da equipe caiu, o que está acontecendo?” é uma política emocional mais eficaz do que qualquer discurso motivacional.É o oposto da dissociação.
3. Autonomia — O antídoto da automatização
A Gallup e a MIT Sloan apontam que o burnout decorre da combinação de alta demanda e baixo controle.A microgestão, ao restringir autonomia, transforma o cérebro em executor e mata o senso de autoria.Líderes que protegem o tempo de foco, cancelam reuniões desnecessárias e definem resultados em vez de ordens criam o que a psicologia chama de agência consciente — o oposto da anestesia.
Reconstruindo o vínculo: a Engenharia de Emoções
A Síndrome da Desconexão Afetiva é o produto de um modelo de trabalho que dissocia emoção e desempenho.Mas os dados mostram que o caminho da produtividade sustentável passa justamente pela reintegração do humano.
A Engenharia de Emoções, proposta pela Althea, parte desse princípio:que o afeto não é um ruído na produtividade, mas seu componente vital.Medir engajamento, propósito e segurança não é luxo — é governança emocional.
Porque o verdadeiro futuro do trabalho não está em desligar o que sentimos,mas em transformar o que sentimos em dado, cultura e resultado.
Conheça o Althea Mapa — o diagnóstico que revela como emoção, propósito e desempenho se conectam.
Referências
GALLUP. State of the Global Workplace 2024. Washington, DC: Gallup, 2024.
ISMA-BR. Pesquisa Nacional de Estresse e Burnout. São Paulo: ISMA-BR, 2024.
MIT SLOAN MANAGEMENT REVIEW. The New Productivity Paradox. Cambridge, MA: MIT, 2023.
HARVARD BUSINESS REVIEW. The Cognitive Overload Crisis. Boston: HBR, 2024.
MASLACH, Christina; LEITER, Michael P. Burnout: The Cost of Caring. UC Berkeley, 2016.
WRZESNIEWSKI, Amy. Job Crafting and the Meaning of Work. Yale School of Management, 2010.
EDMONDSON, Amy. The Fearless Organization: Creating Psychological Safety in the Workplace. Hoboken: Wiley, 2019.
WORLD HEALTH ORGANIZATION. World Mental Health Report: Transforming Mental Health for All. Geneva: WHO, 2023.
McKINSEY HEALTH INSTITUTE. The State of Workplace Mental Health 2025. Nova York: McKinsey, 2025.
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