Transformação digital e capital humano
- Hélio Salomão Cordoeira
- 17 de jul.
- 4 min de leitura
O que estamos acelerando — e o que estamos deixando para trás?
A transformação digital não é mais uma tendência no mundo do trabalho. É uma realidade. Sistemas de automação, inteligência de dados, machine learning, plataformas de engajamento e ferramentas de autoatendimento já estão presentes em grande parte das organizações — inclusive no RH, que por muito tempo foi um dos setores mais analógicos da empresa.
Mas à medida que o discurso da inovação tecnológica se impõe como solução para quase todos os desafios organizacionais, uma tensão começa a se revelar: é possível transformar o trabalho apenas modernizando suas ferramentas, sem revisar suas lógicas?
É aqui que mora o risco. Quando a transformação digital não é acompanhada de uma transformação cultural, o que temos não é um novo modelo — mas a mesma estrutura, agora acelerada, automatizada e maquiada de inovação.
A armadilha da modernização sem mudança
Automatizar processos, digitalizar a comunicação interna, implantar plataformas de gestão de desempenho, implementar programas de escuta ativa, usar inteligência artificial para recrutamento — tudo isso tem potencial estratégico.
Mas quando esses recursos são incorporados sem revisar a forma como a organização lida com tempo, confiança, conflito e cuidado, o que ocorre é a intensificação da lógica já existente:
⟶ mais cobrança com menos diálogo
⟶ mais indicadores com menos contexto
⟶ mais agilidade com menos escuta
É como instalar sensores de última geração em um carro com direção comprometida: o risco deixa de ser visível, mas continua operando — agora com mais velocidade.
A digitalização não é neutra: ela também carrega valores
Toda tecnologia organiza o mundo de determinada forma. Ela prioriza certos comportamentos, facilita certas respostas e desincentiva outras. Ao adotar plataformas digitais no RH, estamos fazendo escolhas sobre como o trabalho será vivido, medido e sentido.
Quando implantamos uma ferramenta de avaliação de desempenho contínuo, por exemplo, estamos dizendo que o acompanhamento constante é mais eficaz que ciclos longos. Quando oferecemos um sistema de autoatendimento para benefícios, dizemos que autonomia operacional é um valor. Quando integramos inteligência preditiva para avaliar risco de turnover, estamos assumindo que o comportamento humano pode (e deve) ser previsto por dados.
Nada disso é um problema por si só. O problema começa quando essas decisões são tomadas sem consciência crítica — ou pior, sem envolver as pessoas que viverão essas tecnologias no dia a dia.
O RH entre algoritmo e escuta
O RH é talvez o setor mais afetado pela transformação digital. Mas também é o mais ambivalente.
De um lado, ganha potência: pode deixar de ser operacional e assumir seu lugar como agente estratégico da cultura. De outro, corre o risco de perder a escuta, a sensibilidade e a presença — justamente os atributos que o diferenciam.
People Analytics, por exemplo, é uma ferramenta poderosa. Ele pode ajudar a prever padrões de rotatividade, identificar lideranças tóxicas, antecipar sintomas de esgotamento. Mas se usado sem um projeto cultural por trás, pode gerar vigilância, controle excessivo e desumanização.
Dados não são diálogo.Eles ajudam a perceber o que está acontecendo — mas não explicam por quê. E não dizem o que fazer com isso.
Por isso, a transformação digital no RH precisa estar a serviço da escuta, da complexidade e da responsabilidade — e não da padronização de respostas.
O que precisa mudar, além da ferramenta?
A verdadeira transformação do capital humano exige que a tecnologia seja meio — e não fim. Ela exige que o cuidado seja visto como um projeto estrutural, e não como um benefício extra.
Isso significa, na prática:
Garantir políticas de flexibilidade real, e não apenas plataformas de controle de ponto remoto.
Substituir comando por confiança, e não apenas abrir mais canais de comunicação.
Legitimar pausas e descansos como parte da produtividade, e não como prêmio por performance.
Valorizar lideranças emocionalmente disponíveis, capazes de lidar com conflito, frustração e escuta ativa.
Criar rituais de cuidado que não dependam da boa vontade de alguns, mas sejam sustentados por uma cultura coletiva.
Porque se a tecnologia permite redesenhar o trabalho, a pergunta é: vamos redesenhar para quê — e para quem?
A aceleração como fuga
Muitas vezes, a aposta no digital surge como resposta ao medo: medo de ficar para trás, de perder talentos, de parecer atrasado. Mas há um risco invisível nessa aceleração: usar a inovação como fuga das perguntas difíceis.
⟶ Qual é o modelo de trabalho que queremos sustentar nos próximos 10 anos?
⟶ Que tipo de liderança estamos formando?
⟶ Qual é o custo subjetivo da hiperprodutividade?
⟶ Estamos realmente cuidando das pessoas — ou só melhorando nossa capacidade de extrair resultado delas?
Tecnologia sem ética vira instrumento de esgotamento.Tecnologia sem cuidado vira ferramenta de opressão refinada.
O que estamos dispostos a redesenhar?
Na Althea, acreditamos que transformação digital precisa ser acompanhada de transformação cultural, relacional e emocional.Não basta mudar o sistema. É preciso mudar a lógica que sustenta o sistema.
E isso começa por uma pergunta séria e sem atalhos:o que estamos dispostos a redesenhar para que o trabalho volte a ser um espaço habitável para quem cuida, para quem lidera e para quem vive nele todos os dias?
Comentários