Althea Report | O Mercado Global de Bem-Estar: a financeirização do cuidado
- Hélio Salomão Cordoeira
- 30 de out.
- 8 min de leitura
De benefício corporativo a ativo financeiro: como o bem-estar virou commodity — e por que medir cuidado é o próximo desafio da governança emocional.
O novo ouro corporativo
Nos últimos cinco anos, o mercado global de bem-estar deixou de ser uma vertente da saúde e passou a ser um setor econômico autônomo, avaliado em US$ 5,6 trilhões (Global Wellness Institute, 2024).Plataformas de mindfulness, apps de terapia, programas corporativos e até wearables de regulação emocional são hoje tratados como ativos de investimento, não mais como iniciativas de saúde pública.
O cuidado entrou na planilha.E com isso, o seu significado mudou.
De expressão humana, ele se tornou uma categoria de consumo — e agora, de financeirização: um campo onde o capital não apenas observa o sofrimento, mas tenta monetizá-lo. A indústria do bem-estar: um mercado sem métricas
A economia do bem-estar é, hoje, um dos setores mais dinâmicos do planeta — e, paradoxalmente, um dos menos mensurados.De acordo com o Global Wellness Institute (2024), esse mercado já ultrapassa US$ 5,6 trilhões, divididos em subsegmentos que vão desde nutrição, fitness e mindfulness até wearables, terapias digitais e programas corporativos de saúde mental.Mas, apesar da escala e da narrativa de impacto, apenas 28% das empresas globais afirmam avaliar o retorno real de seus investimentos em bem-estar (McKinsey Health Institute, 2024).
Em outras palavras: o bem-estar se tornou um dos maiores negócios do mundo — mas sem parâmetros confiáveis de efetividade.
O paradoxo da sensação
Nos relatórios corporativos, “bem-estar” é frequentemente descrito em termos genéricos: engajamento, felicidade, equilíbrio.São expressões positivas, mas vagas e não verificáveis.A promessa do setor é emocional; sua mensuração, subjetiva.Isso cria um paradoxo estrutural: a indústria que se apresenta como científica opera, na prática, sob critérios de percepção.
De um lado, startups de tecnologia emocional atraem bilhões de dólares em rodadas de investimento;do outro, as taxas de estresse e esgotamento global continuam em alta.O Relatório Mundial de Saúde Mental (OMS, 2023) mostra que os transtornos mentais já representam 12% de todas as doenças no mundo — proporção que cresce mesmo com o avanço das ferramentas digitais de “autocuidado”.A equação é clara: quanto mais produtos de bem-estar surgem, mais o mal-estar se torna mensurável.
O impasse da mensuração
Parte do problema está na ausência de padrões internacionais que avaliem impacto emocional e psicológico dentro das organizações.Enquanto o ESG conta com frameworks maduros para carbono e governança, o campo do bem-estar segue fragmentado.Cada empresa mede o que consegue — ou o que interessa à sua narrativa.Algumas usam pesquisas de clima com perguntas genéricas; outras contabilizam adesão a aplicativos de meditação como “prova de engajamento”.
Mas engajamento não é evidência de eficácia.Sem indicadores objetivos, o bem-estar se transforma em gestão simbólica do humor coletivo: parece agir, mas não transforma.
O professor Cary Cooper (University of Manchester, 2023) resume o dilema:
“O mercado de bem-estar cresceu mais rápido do que sua ciência.Nós aprendemos a vender o alívio antes de entender o sofrimento.”
O ciclo da performance emocional
A ausência de métricas também alimenta um novo tipo de pressão corporativa:a performance emocional.Empresas exigem que os colaboradores demonstrem engajamento e otimismo, mas sem oferecer condições estruturais para isso.A lógica da produtividade migrou do físico para o psicológico: agora é preciso “sentir bem” para performar bem — mesmo quando o ambiente adoece.
De acordo com o Harvard Business Review (2023), 52% dos profissionais afirmam sentir-se “emocionalmente cansados de parecer bem”.Ou seja, o discurso do bem-estar gera fadiga afetiva, pois transfere a responsabilidade da saúde mental do sistema para o indivíduo.
Em termos econômicos, o que deveria ser uma infraestrutura de cuidado se converte em mercado de manutenção da imagem saudável.Em termos humanos, o resultado é ainda mais profundo: a transformação do afeto em KPI.
A urgência da evidência
A lacuna de métricas confiáveis não é apenas um desafio técnico — é um risco ético e regulatório.Com a entrada dos riscos psicossociais na NR-1 (2025), as empresas brasileiras passam a ter a obrigação de identificar, avaliar e reduzir fatores que possam gerar sofrimento mental no trabalho.Isso significa que o bem-estar corporativo precisa ser auditável, não apenas inspirador.
O que está em jogo não é a popularidade de um programa, mas sua rastreabilidade, sua correlação com indicadores de risco e sua efetividade mensurável.Sem essa estrutura, o mercado continuará se expandindo em percepção, não em resultado — e o cuidado seguirá sendo uma promessa performática, não uma prática sustentada.
O paradoxo do wellness washing
A indústria do bem-estar nasceu da promessa de humanizar o trabalho.Mas, à medida que o tema ganhou valor de mercado, o cuidado passou a ser tratado como ativo reputacional, e não como infraestrutura de saúde.O resultado é um paradoxo crescente: quanto mais as empresas falam sobre bem-estar, menos ele se concretiza em mudanças reais.
A essa contradição dá-se o nome de wellness washing — o uso de discursos e programas de bem-estar como forma de marketing institucional, desvinculado de práticas consistentes de gestão emocional, prevenção e conformidade.É a versão emocional do greenwashing: o cuidado como narrativa, e não como política.
O discurso do equilíbrio, a cultura do esgotamento
Segundo o World Mental Health Report (OMS, 2023), 70% das empresas que declaram investir em programas de bem-estar não possuem nenhuma política formal de prevenção de riscos psicossociais.A maioria dessas iniciativas é pontual, recreativa e centrada no indivíduo — palestras, aulas de ioga, apps de meditação — sem integração com o sistema de gestão da saúde ocupacional.
A consequência é o que a Harvard Business Review (2023) chama de cognitive dissonance corporate:o descompasso entre o discurso da leveza e a prática da sobrecarga.Na mesma semana em que celebram o “Janeiro Branco”, líderes cobram metas impossíveis, e equipes permanecem em alerta permanente.
O bem-estar, assim, torna-se um instrumento simbólico de controle, não de libertação:um modo sofisticado de manter a imagem de empatia sem alterar as estruturas que produzem o sofrimento.
“As empresas passaram a gerenciar emoções como gerenciam marca: com slogans, não com estruturas.”— Relatório Althea, 2025
Quando o cuidado é branding
Nos relatórios ESG e campanhas internas, o vocabulário do bem-estar se tornou onipresente.Palavras como “autenticidade”, “propósito” e “saúde emocional” aparecem em apresentações corporativas com a mesma frequência que “lucro” e “crescimento sustentável”.Mas, ao analisar as práticas internas, observa-se um abismo entre a retórica do cuidado e a política do desempenho.
De acordo com o estudo Deloitte Global Human Capital Trends (2024),embora 82% das empresas afirmem considerar a saúde mental “prioridade estratégica”,apenas 21% possuem indicadores formais de mensuração ou orçamento dedicado à área.Em outras palavras: o cuidado é central na narrativa, mas periférico na estrutura.
O wellness washing prospera nesse espaço de ambiguidade —onde o investimento em aparência substitui o investimento em evidência.A empresa não precisa mudar a cultura, basta parecer empática.
O efeito colateral: a fadiga do engajamento
Paradoxalmente, o wellness washing não apenas falha em promover bem-estar, mas agrava o cinismo organizacional.Pesquisas do McKinsey Health Institute (2023) mostram que funcionários expostos a iniciativas simbólicas de bem-estar, sem correspondência estrutural,relatam 2,3 vezes mais sentimentos de desconfiança e desengajamento do que aqueles em empresas que assumem menos discurso, mas maior coerência.
É a fadiga do engajamento — um tipo de esgotamento afetivo gerado não pela falta de ações, mas pela percepção de falsidade institucional.Quando o cuidado é instrumentalizado como peça de marketing, ele deixa de gerar pertencimento e passa a gerar descrença emocional.
Em um ambiente de wellness washing, a empatia é performática,a escuta é cerimonial,e o silêncio — mais do que nunca — é sintoma de autoproteção.
O custo do discurso vazio
O wellness washing é um risco reputacional e regulatório em ascensão.Com a NR-1 (2025) exigindo o Gerenciamento de Riscos Psicossociais (GRO),as empresas que mantêm programas de “bem-estar simbólico” sem correlação com indicadores reais podem ser questionadas em auditorias de SST (Segurança e Saúde no Trabalho).
Do ponto de vista jurídico, o risco não está no discurso em si,mas na inconsistência entre o que se declara e o que se pratica — o mesmo princípio que sustenta as sanções de greenwashing no campo ambiental.Na prática, isso significa que a ausência de mensuração emocional é também uma forma de não conformidade.
Além disso, o wellness washing compromete o retorno econômico do próprio investimento:segundo a Gallup (2023), empresas com políticas incoerentes de bem-estar apresentam 20% menos engajamento e 41% mais rotatividade.Ou seja, a aparência de cuidado é mais custosa que o cuidado real.
A virada necessária: da sensação à evidência
O desafio agora é reconstruir o cuidado sobre bases empíricas e institucionais. Se o bem-estar foi capturado pela lógica do capital, a resposta não é abandoná-lo — mas governá-lo.
Isso significa:
Medir o que é mensurável: níveis de estresse, engajamento e risco psicossocial.
Integrar compliance e cultura: conectar programas de bem-estar às diretrizes da NR-1 e à ISO 45003.
Tratar saúde mental como infraestrutura, e não como benefício.
É nesse ponto que entra o conceito da Engenharia de Emoções:um modelo que traduz o cuidado em dados, sem desumanizá-lo —e o investimento em bem-estar em política pública corporativa, não em discurso de marca. Superar o wellness washing exige mais do que boa comunicação —exige governança emocional: a capacidade de conectar iniciativas de saúde mental a dados, métricas e compliance.
Na Engenharia de Emoções, isso se traduz em três eixos fundamentais:
Evidência: cada ação deve ter correlação com dados de risco, clima e comportamento.
Escuta contínua: o bem-estar não se mede em eventos, mas em ritmos emocionais.
Coerência institucional: a cultura precisa sustentar o discurso, não o contrário.
O cuidado só é verdadeiro quando resiste à planilha —quando ele se transforma em processo, e não em campanha.
O wellness washing nasce da boa intenção sem método. Mas, num mundo em que o sofrimento humano é mensurável, a falta de evidência não é mais inocente — é omissão.
Empresas maduras entenderão que cuidar não é comunicar, é comprovar.E que o futuro do bem-estar não será definido pelas empresas que mais falam sobre saúde mental,mas pelas que conseguirem provar que ela existe.
O futuro do bem-estar: governança emocional e transparência
A próxima década deve consolidar o que a OMS já chama de “governança emocional corporativa” —a integração entre métricas de saúde mental e indicadores ESG.O bem-estar deixará de ser tema de RH e passará a ser parâmetro de compliance e risco reputacional.
Empresas que não mensurarem seus indicadores emocionais enfrentarão, em breve, o mesmo escrutínio que hoje recai sobre carbono ou diversidade.
O cuidado será o próximo KPI de sustentabilidade.
A financeirização do cuidado só será revertida quando o dado for usado para humanizar — e não para controlar.E é isso que diferencia uma wellness company de uma empresa emocionalmente sustentável.
O retorno sobre a empatia
O mercado global de bem-estar não é apenas um espelho da economia; é o reflexo do que decidimos medir.Enquanto o capital medir engajamento por tempo de tela, o cuidado continuará refém da performatividade.Mas quando começar a medir segurança psicológica, clima emocional e risco psicossocial, o bem-estar deixará de ser um produto — e voltará a ser uma prática.
A Engenharia de Emoções nasce exatamente nesse ponto:no encontro entre o dado e o humano, entre a métrica e o vínculo,onde o ROI deixa de ser apenas “retorno sobre investimento”e passa a significar retorno sobre empatia.
Fontes
Global Wellness Institute. Global Wellness Economy Monitor 2024.
McKinsey Health Institute. Wellness at Work: The $1 Trillion Opportunity, 2024.
Crunchbase. Global Healthtech Funding Report, 2024.
OMS. World Mental Health Report, 2023.
Crawford, R. Healthism and the Medicalization of Everyday Life, 1980.
GOV.BR. NR-1: Gerenciamento de Riscos Ocupacionais, 2025.
ISO. Guideline 45003: Psychological Health and Safety at Work, 2023.
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